Marcos

I. AUTORIA

Este evangelho não menciona o seu autor. Entretanto, a autoria de Marcos, assistente de Pedro, nunca foi seriamente posta em dúvida. Não se duvida tampouco que este Marcos seja aquele “João, que tinha por sobrenome Marcos”, a quem o Novo Testamento se refere oito vezes. Era parente de Barnabé (#Cl 4.10); a afirmação de #1Pe 5.13 pode significar que ele se converteu por meio de Pedro. Nos escritos patrísticos dos primeiros quatro séculos há abundante evidência para a autoria marcana. Papias, Justino Mártir, Irineu, Clemente de Alexandria, Tertuliano, Orígenes, Eusébio e Jerônimo se referem à autoria de Marcos.

 

II. DATA E LUGAR DA OBRA

 

Quanto à data do segundo evangelho, as opiniões variam muito dentro dos 35 anos entre 40 A. D. e 75 A. D. Marcos é agora aceito, quase universalmente, como o mais antigo dos quatro evangelhos. Por um lado, a declaração de Irineu que Marcos compõs seu evangelho “depois da saída (exodos) de Pedro e Paulo”, indica uma data não anterior a 68. A. D., e não posterior a 70 A. D., ano da destruição de Jerusalém, se aceitarmos a hipótese, não absolutamente segura, de que esta “saída” significa a morte. Dr. Vincent Taylor apóia a data 65 a 67 A. D. e considera precárias as teorias de uma data mais antiga. Por outro lado, a relação de Marcos com os outros sinóticos, especialmente com Lucas que precede os Atos dos Apóstolos (Ver #At 1.1), sugere uma data nos meados do século. Uma data entre 50 e 55 A. D. nos daria uma posição entre os dois extremos.

 

A maioria dos eruditos, seguindo evidências antigas, apontam Roma como o lugar em que foi escrito. Dr. Graham Scroggie considera que #1Pe 5.13 tende a confirmar esta idéia, caso Babilônia significasse Roma. Outros sugerem Alexandria, Cesaréia e Antioquia da Síria.

 

É provável que este evangelho fosse escrito para leitores gentílicos em geral e mais particularmente para os romanos. Há relativamente poucas citações e alusões tiradas do Velho Testamento; expressões aramaicas são interpretadas (v.g. #Mc 5.41); os costumes dos judeus são explicados (v.g. #Mc 7.3-11); algumas palavras latinas aparecem. O teor geral da obra, que representa a incessante atividade do Senhor e Seu poder sobre os demônios, a enfermidade e a morte, atrairia o leitor romano, interessado mais em atividade do que em palavras.

 

III. MARCOS E PEDRO

 

Uma tradição oriunda de Papias (70-130 A. D.) reconhece, atrás da narrativa de Marcos, a pregação e autoridade do apóstolo Pedro. Esta afirmação de Papias é conservada por Eusébio da seguinte maneira: “Marcos, sendo o intérprete de Pedro, escreveu acuradamente tudo quanto ele se lembrou das coisas ditas e feitas pelo Senhor, porém não as colocou em ordem”. Outros escritores patrísticos confirmam esta tradição que, segundo Dr. Vincent Taylor, “é tão segura que, ainda não a possuíssemos, seríamos obrigados a postular algo parecido”. Isto não quer dizer que Marcos era apenas um secretário ou amanuense, nem tampouco que não usou material de outras fontes, inclusive as suas próprias reminiscências. É patente que o autor, embora não um dos doze apóstolos, possuía conhecimento muito íntimo dos fatos narrados, em que se revelam todos os sinais de originalidade. A ordem e classificação de material adotadas por Marcos são certamente criticadas pela tradição de Papias. Aparentemente, o evangelho segue uma ordem homilética, em vez de cronológica.

 

As evidências internas da influência petrina são as seguintes:

 

O evangelho começa com a chamada de Pedro, sem referência alguma à natividade de Cristo.

 

O evangelho focaliza o ministério na Galiléia, e mais especialmente nos arredores de Cafarnaum, cidade de Pedro.

 

A vividez das descrições indica que são as experiências pessoais de uma testemunha ocular.

 

São omitidos alguns pormenores que destacam a pessoa de Pedro, em a narração da confissão de Pedro, em Cesaréia de Filipe, e do seu andar sobre o mar. São relatadas minuciosamente as suas derrotas, como a negação do Mestre.

 

IV. FONTES

 

Uma vez aceita a prioridade de Marcos, as pesquisas quanto às fontes deste evangelho não têm obtido o mesmo êxito como no caso de Mateus e de Lucas.

 

A tradição oral tornou-se o objeto de intensos estudos nos últimos cinqüenta anos, estudos estes que deram origem à Crítica de Forma propalada por Martin Dibelius. A Crítica de Forma propõe a existência, antes de serem escritos os evangelhos que possuímos, de pequenos círculos de tradição. Estes círculos conservariam o evangelho pelo método oral, embora houvesse alguns evangelhos escritos, como o prefácio de Lucas indica. A nomenclatura desses círculos difere conforme o crítico. B. S. Easton divide o material da maneira seguinte: Ditados, Parábolas, Diálogos, Narrativas Miraculosas e Narrativas da Paixão. V. Taylor distingue Histórias Declarativas, Histórias Miraculosas e Histórias sobre Jesus. A evidente diversidade entre as diferentes análises aponta para o perigo inerente nelas, a saber, a pura subjetividade que as determina, tendo em vista a impossibilidade de verificação externa, que se usa para a Crítica Textual. Uma vez que se propõem investigações além dos documentos escritos, qualquer hipótese razoável pode ser sugerida. Por outro lado, há valor na insistência dos críticos da forma que o evangelho era pregado antes de ser escrito. Com o decorrer do tempo, muito material assumiu forma mais definida para os fins mnemónico e catequético, e disto há indicações na ordem tópica que Marcos adota.

 

Quanto à sua forma e caráter, esta tradição oral é em grande parte semítica. A presença de uma considerável influência aramaica no grego de Marcos indica isto, sem porém levar-nos a conclusão, mantida por C. C. Torrey e outros, de que o evangelho fosse tradução de um original aramaico. O importante é que este fato aumenta incontestavelmente o valor histórico da obra, visto que Marcos, embora gentílico nas suas simpatias, se coloca perto da tradição dos cristãos judeus. Quanto às fontes documentárias, a questão principal é se Marcos conheceu e utilizou o duvidoso documento “Q”. Na opinião do Cônego Streeter é quase certo que “Q” precede Marcos; outros pretendem reconhecer vestígios de “Q” no seu evangelho. Além desta possibilidade indecisa, não há mais para dizer. Alguns procuram provar a existência duma edição preliminar, uma espécie de ensaio, conhecida como Ur-Markus, isto é, Marcos Original, mas esta sugestão altamente subjetiva pode ser considerada apenas uma hipótese. Em síntese, podemos dizer que a fonte principal deste evangelho é a pregação e ensino de Pedro, cujo sermão em Cesaréia constitui realmente um resumo do evangelho (#At 10.34-43). A esta fonte principal seriam acrescentadas uma parte geral da tradição oral, as reminiscências pessoais de Marcos, e talvez material tirado de outros documentos.

 

V. TEOLOGIA

 

a) A Pessoa de Cristo

 

Consta que Marcos apresenta a pessoa de Cristo como Servo de Jeová (#Is 52.13-53.12), enquanto Mateus o descreve como Rei, Lucas como Homem, e João como Filho de Deus. Diversos aspectos deste evangelho, como a ausência de uma genealogia e a predominância da ação sobre o ensino, apóiam esta descrição. O uso do título “Filho do Homem” ocorre quatorze vezes neste evangelho, e se interpreta na maioria dos casos (#Mc 8.31; #Mc 9.9,12,31; #Mc 10.33,45; #Mc 14.21,41) de acordo com este conceito. Entretanto, desde o primeiro versículo do livro, Marcos identifica o humilde Servo como o próprio Filho de Deus, cujo ministério é autenticado por suas obras poderosas. É inequívoca a atestação divina desta identidade na hora do batismo e da transfiguração (#Mc 1.11; #Mc 11.7). Dr. V. Taylor a considera como o elemento mais fundamental da cristologia marcana, “uma cristologia tão sublime como se encontra em qualquer parte do Novo Testamento, sem excluir o evangelho de S. João”.

 

O ministério messiânico de Jesus, segundo Marcos, se vê como segredo bem guardado, pelo menos até a confissão de Pedro (#Mc 8.30). Sem dúvida, o motivo para sigilo seria de evitar o perigo inerente nos conceitos populares nacionalistas e materialistas, com que as expectativas dos judeus investiram o título. Ao mesmo tempo, o autor desejava assegurar-lhe uma significação tanto ética como apocalíptica. O termo “Cristo” se usa apenas sete vezes, e Jesus nunca o usa com referência a si mesmo.

 

b) A Obra de Cristo

 

As duas metáforas usadas em #Mc 10.45 e #Mc 14.24 indicam quais são as doutrinas principais enunciadas. A vida do Nosso Senhor, dada como sacrifício, se descreve como “resgate de muitos”, e como o “sangue do Novo Testamento”. Aquele efetua libertação do pecado e do juízo, enquanto este estabelece um novo pacto e comunhão entre Deus e o homem. Estes conceitos em Marcos não são elaborados num sistema de doutrina. Há menos razão ainda para supor que a referência ao “resgate” indique influência paulina. Diz o Dr. James Denney: “Se achamos o mesmo pensamento em Paulo, não digamos que o evangelista fosse exposto à influência paulina, mas antes que S. Paulo aprendeu aos pés de Jesus. Todos os sinóticos mencionam as três ocasiões em que Jesus procurou, propositadamente, advertir os discípulos de sua paixão próxima. Mas é Marcos que observa mais especialmente as diferentes atitudes dos discípulos (#Mc 8.31 e seg.; #Mc 9.31 e seg.; #Mc 10.32).

 

c) Escatologia

 

A escatologia do evangelho se encontra principalmente nas duas passagens #Mc 8.38-9.31 e #Mc 13.1-37, em que Jesus discursa sobre dois acontecimentos bem separados em tempo, a saber: a destruição de Jerusalém em 70 A. D., e Sua segunda vinda em glória. Contudo, é preciso reconhecer que Marcos escreve do Reino de Deus em termos predominantemente escatológicos. As idéias básicas deste conceito são, primeiro, o governo real dum Deus soberano, e em segundo lugar, de um reino ou comunidade em que se ingressa (#Mc 9.47; #Mc 10.23). As declarações sobre este segundo conceito podem conter uma possível significação futura, também, mas outras referências, como #Mc 14.25 e #Mc 15.43, se aplicam, inegavelmente, a um cumprimento futuro.

 

d) Afinidade com o ensino paulino

 

Foi mencionada acima a sugestão que Marcos fosse sujeito à influência paulina. É assunto de importantes debates desde muito tempo. É verdade que há muito em comum tanto no vocabulário como nas idéias entre este evangelho e os escritos de Paulo. Entretanto, esta semelhança é verificável em quase todos os escritos da igreja primitiva. Por outro lado, é verdade também que muitas das expressões e conceitos doutrinários tipicamente paulinos, como por exemplo “justiça”, “justificação pela fé”, “união com Cristo”, “vida no Espírito” etc., são inteiramente ausentes em Marcos. Só podemos dizer que Marcos viveu e escreveu num ambiente romano e paulino e, mais ainda, que talvez conhecesse algumas das epístolas mais primitivas. Como observa o Dr. V. Taylor: “Marcos nem refaz, nem ofusca a tradição histórica. Seu Jesus é o Jesus da Galiléia”.

 

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